Psicanálise e Feminismo
- Paula Alves
- 27 feb 2023
- 4 Min. de lectura
Actualizado: 6 mar 2023

O debate entre psicanálise e feminismo atravessou o século XX e atualmente vem sendo bastante comentado. Muita gente diz: ah, a psicanálise é machista! Será que é verdade? O que isso quer dizer?
Para começar, vamos pensar que a psicanálise tem por um lado a prática clínica, que são os atendimentos, o momento em que estamos junto ao paciente; por outro, aquilo que Freud chamou de metapsicologia, que é a teoria criada a partir das observações clínicas e que descreve os processos psíquicos. Além de Freud, inúmerxs autorxs se dedicaram a pensar os modos de agenciamento do psiquismo. Gostaria de trazer aqui diferentes pensamentos teóricos para mostrar os pontos de vista que a teoria pode adotar.
Voltemos lá nos primórdios da psicanálise.
No final do século 19 Freud, neurologista, se interessou por um fenômeno que se tornava cada vez mais comum na época: a histeria. Atingia principalmente mulheres que apresentavam sintomas como: uma paralisia de uma parte do corpo, perda da voz, da visão, grave confusão mental - sintomas para os quais os médicos não conseguiam encontrar uma causa. Essas mulheres eram internadas e esquecidas em hospitais psiquiátricos, acreditava-se que estavam loucas. Freud, ouvindo essas mulheres, constatou que este padecimento revelava duas questões fundamentais à psicanálise: a repressão da sexualidade e o inconsciente.
Em uma sociedade onde as mulheres não tinham direito ao voto, ao divorcio, ao prazer, podemos pensar a histeria como uma resposta do corpo à repressão do desejo feminino.
Freud, assim, revelava a crise da dominação masculina, ainda que tentando, de uma certa forma, decifrar como moldar essa sexualidade disruptiva. Priorizando a compreensão da relação das pessoas com o pai, Freud dirá que o feminino se constitui pela “inveja do pênis” e toda potencialidade narcísica das mulheres, sua forma de ser poderosa, independente, sustentaria a noção de “mulher fálica”, aquilo que para Freud é um sintoma.
Dialogando com o pensamento de Freud, ainda no começo do século XX, Melanie Klein, um dos grandes nomes da história da psicanálise, mudará o foco de atenção de alguns preceitos de Freud, dando maior relevância à relação do ser humano com a mãe, logo no princípio da vida. Klein também dialoga com a ideia de "inveja do penis” proposta por Freud, descrevendo o que ela chamou de “inveja do seio”, que seria uma das primeiras formas de relação que o bebe teria com a mãe e que agiria tanto em homens quanto em mulheres.
A teoria lacaniana, por sua vez, tem “o falo” (o representante do penis em nossa subjetividade) como central, assim o feminino para Lacan é “o outro”, um lugar de ausência/excesso. Lucy Irigaray, feminista, filósofa e psicanalista francesa, em diálogo com Lacan, dirá que a mulher, o feminino, não é o outro do homem, do masculino, uma ausência, mas trata-se de sujeitxs diferentes em sua constituição. Para a autora, em uma lógica binária do um e do outro, (o um como universal, o falo, o masculino, o outro como o objeto, a mulher) o que fica excluído é exatamente o “feminino”. Ou seja, para ela a diferença entre feminino e masculino não pode ser pensada como oposição nem como hierarquia (presença/ausência), mas como diferença constitutiva…
No Brasil, gostaria de citar a Lelia Gonzalez, uma das maiores pesquisadoras da história do nosso país. Lelia vai usar a psicanálise para pensar o lugar das mulheres e das pessoas negras, fundamentando uma luta feminista e anti-racista. Para ela, o racismo é um sintoma da neurose cultural brasileira e o silenciamento das mulheres e das pessoas negras, um mecanismo de repressão que gera uma violência que fica atuando de maneira inconsciente na sociedade.
Assim como Lucy Irigaray e Lelia Gonzalez, os estudos de gênero e o movimento feminista vão dialogar inúmeras vezes com a psicanálise, ainda que seja para se contrapor, para desconstruí-la, revelando como a teoria reverbera o machismo da sociedade. Xs psicanalistas, por sua vez, buscam olhar para a teoria à luz dos modos de vida contemporâneos. É um debate constante, que continua em desenvolvimento. Neste sentido, considero importante situarmos o pensamento de cada autorx no momento histórico que o produz, para poder problematizá-lo e adaptá-lo às necessidades clínicas dx paciente que nos consulta.
Volto então à prática clínica, o momento que estamos com o paciente.
Existe uma série de técnicas que guiam o nosso trabalho. Se pensarmos em termos técnicos, a gente busca fornecer uma escuta para que a pessoa que nos procura possa projetar seus conteúdos psíquicos. Os caminhos que apontamos - através de perguntas e interpretações - visam ajudar a pessoa a perceber como funciona seu próprio corpo, seu sofrimento, como ela foi se desenvolvendo ao longo de sua história de vida para se adaptar às dificuldades pelas quais passou. Assim, em termos da clínica, a psicanálise não é machista, nem feminista, nem nada a priori.
Mas acontece que não existe uma escuta totalmente neutra e nesse sentido algumas das posições pessoais do/da analista podem aparecer e influenciar a escuta. Dessa forma, eu pessoalmente acredito que a psicanálise não é algo totalmente conciso - ela pode adquirir diversas formas, estéticas, dependendo da linha de pesquisa, das referências que influenciam a/o psicanalista. Por isso é bastante importante buscar umx psicanalista com quem se tenha um “feeling”, que dê o “match”. Com isso não quero dizer que se deva buscar uma pessoa que tenha as mesmas posições que a sua, mas buscar uma pessoa com quem se sinta confortável em se abrir.
(Foto: Rovena Rosa_Agência Brasil)
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