Psicanálise e Feminismo
- Paula Alves
- 27 feb 2023
- 3 Min. de lectura
Actualizado: 21 nov

O debate entre psicanálise e feminismo atravessou o século XX e, atualmente, tem ganhado cada vez mais visibilidade. Muita gente diz: “ah, a psicanálise é machista!” Mas será que isso é verdade? E o que exatamente se quer dizer com isso?
Para começar, é importante diferenciar dois campos da psicanálise: por um lado, a prática clínica — o momento do encontro entre analista e paciente; por outro, aquilo que Freud chamou de metapsicologia — a teoria que descreve o funcionamento psíquico a partir da experiência clínica. Além de Freud, muitas autoras e autores se dedicaram a pensar os modos pelos quais o psiquismo se organiza. Trago aqui alguns desses pensamentos para mostrar como diferentes perspectivas teóricas abordam a questão.
Voltemos aos primórdios da psicanálise.
No final do século XIX, Freud, então neurologista, interessou-se por um fenômeno cada vez mais frequente na época: a histeria. Ela afetava principalmente mulheres que apresentavam sintomas como paralisias, perda de voz ou visão e confusões mentais graves — sintomas para os quais os médicos não encontravam causas orgânicas. Essas mulheres eram internadas e frequentemente esquecidas em hospitais psiquiátricos. Ao escutá-las, Freud constatou que esse sofrimento revelava dois elementos centrais da psicanálise: a repressão da sexualidade e a existência do inconsciente.
Em uma sociedade onde mulheres não tinham direito ao voto, ao divórcio nem ao prazer, podemos entender a histeria como uma resposta do corpo à repressão do desejo feminino.
Freud, assim, revelava uma crise na dominação masculina, ainda que buscando decifrar e até normatizar essa sexualidade que escapava aos padrões da época. Ao priorizar a relação com o pai como eixo do desenvolvimento, propôs que o feminino se constituiria pela “inveja do pênis”; já a potência e independência das mulheres foi lida como “mulher fálica”, entendida por ele como um sintoma.
No início do século XX, Melanie Klein deslocou parte do foco freudiano, atribuindo grande importância à relação precoce do bebê com a mãe. Klein também dialoga com a ideia de “inveja do pênis”, propondo o conceito de “inveja do seio”, presente tanto em homens quanto em mulheres.
A teoria lacaniana, por sua vez, coloca o “falo” — entendido como significante — no centro da constituição psíquica. Assim, o feminino aparece como “o outro”, situado entre ausência e excesso. Em resposta, a filósofa e psicanalista Luce Irigaray afirmará que o feminino não é “o outro” do masculino, mas um sujeito diferente em sua constituição, cuja complexidade se perde quando pensamos apenas em oposições como presença/ausência ou homem/mulher.
No Brasil, destaca-se Lélia Gonzalez, intelectual fundamental que utilizou a psicanálise para pensar o lugar das mulheres e das pessoas negras. Para ela, o racismo é um sintoma da neurose cultural brasileira, e o silenciamento de mulheres e pessoas negras constitui um mecanismo de repressão que produz violência e atua de forma inconsciente na sociedade.
Assim como Irigaray e Gonzalez, os estudos de gênero e o movimento feminista dialogam com a psicanálise, muitas vezes para criticá-la e transformá-la, mostrando como a teoria reproduz — e pode superar — aspectos do machismo social. Por outro lado, psicanalistas contemporâneos buscam reler a teoria à luz das formas atuais de vida. O debate é constante e em evolução. Por isso, considero fundamental situar cada teoria em seu contexto histórico, para compreendê-la e adaptá-la às necessidades clínicas da pessoa que nos procura.
Voltemos então à prática clínica — ao encontro com o paciente.
Existem diferentes técnicas que orientam o trabalho analítico. De modo geral, buscamos oferecer uma escuta que permita à pessoa projetar seus conteúdos psíquicos e reconhecer como seu corpo, seus afetos e sua história foram tentando responder às dificuldades e dores vividas. Assim, do ponto de vista técnico, a psicanálise não é machista, feminista ou qualquer outra coisa a priori.
Por isso, acredito que a psicanálise não é uma prática fixa, mas algo que se transforma conforme as linhas teóricas, os referenciais e a sensibilidade de cada analista. E é justamente dessa abertura — teórica e humana — que surge a possibilidade de reler a própria tradição psicanalítica, questionar seus limites e aproximá-la das questões atuais de gênero, raça e cuidado.
(Foto: Rovena Rosa_Agência Brasil)